A inteligência artificial, que vem se mostrando um vetor – tanto decisivo quanto transversal – de transformação na sociedade e nos negócios, não surgiu da noite para o dia.
Desde os anos 1950, quando o termo foi oficialmente apresentado por John McCarthy e outros pesquisadores de destaque na conferência de Dartmouth, o conceito passou por diversos ciclos de entusiasmo e ceticismo, vivenciando períodos chamados de "invernos da IA", nos quais o interesse e os investimentos na área diminuíram significativamente. Foi a partir dos anos 1990 e, especialmente na última década, que o campo voltou a crescer de forma expressiva, consolidando-se não só como área acadêmica – com cursos dedicados nas principais universidades do mundo – mas também como pilar tecnológico estratégico em grandes empresas e governos.
Desde o surgimento do conceito de IA até agora, muita coisa mudou. O que antes era conceitual e depois restrito a laboratórios de universidades e grandes corporações tecnológicas, agora está presente em muitas esferas do nosso dia a dia de forma prática. Soluções que anteriormente podiam ser acessadas por umgrupo seleto de profissionais e pesquisadores chegaram ao público não-técnico que, agora, usufrui e se beneficia das diferentes funcionalidades desta tecnologia como usuário - e não focado no desenvolvimento dela. As pessoas começaram a entender que não é necessário que elas saibam desenvolver a IA para que estejam aptas a usá-la. Também passaram a perceber que estarem aptas a usar IA pode não ser somente uma opção - e sim uma necessidade - ao longo dos próximos anos.
Nesse sentido, os dois últimos anos foram especialmente transformadores. Com a popularização da IA generativa (que gera conteúdos inéditos), impulsionada por ferramentas como o ChatGPT e o DALL-E, milhões de usuários ditos "não técnicos" puderam, pela primeira vez, interagir ativamente com uma tecnologia antes distante e técnica demais para ser compreendida ou utilizada diretamente. Não à toa o ChatGPT alcançou mais de 100 milhões de usuários ativos em menos de três meses, revelando o potencial massivo dessa tecnologia para redefinir o relacionamento das pessoas com a inteligência artificial.
Essa "democratização da IA" teve impactos importantes dentro e fora das organizações. Se antes ela era vista predominantemente como uma função técnica, restrita a departamentos de Tecnologia, hoje o impulso é para que suas funcionalidades sejam exploradas em todas as áreas do negócio. Afinal todos querem sua IA. De acordo com o Gartner, 70% das organizações afirmam estar explorando ativamente casos de uso de IA para aumentar eficiência operacional e reduzir custos, especialmente em tarefas repetitivas e previsíveis. Esse "exercício" de identificação de casos de uso é fundamental, visto que, parafraseando Silvio Meira, estamos ainda na era da pedra lascada da IA: há uma vastidão de possibilidades e oportunidades ainda inexploradas e as organizações, evidentemente, estão focadas em aumentar sua eficiência e reduzir seus custos por meio da tecnologia, até mesmo como forma de justificar seus investimentos.
Porém, limitar a aplicação da inteligência artificial apenas à automação operacional é subestimar seu potencial real. À medida que profissionais e organizações amadurecem sua experiência com a tecnologia, o caminho natural será o de abordá-la de maneira mais tática e, posteriormente, estratégica. Isso implica reconhecê-la não como uma solução operacional, mas como um ativo crítico, capaz de redefinir o posicionamento competitivo das empresas, orientando decisões de mercado, gestão de riscos, vieses e oportunidades futuras.
Um exemplo simples e prático dessa "evolução" pode ser visto em uma clínica médica. Inicialmente, o médico pode utilizá-la para agendar consultas automaticamente, algo essencialmente operacional, o que deve aumentar a eficiência e reduzir custos. Porém, indo além de uma abordagem voltada à eficiência, ele pode utilizar ferramentas inteligentes para realizar diagnósticos mais precisos e personalizados, apoiando suas análises e melhorando substancialmente a qualidade do atendimento prestado aos seus pacientes, em uma aplicação já tática da tecnologia. Em um nível estratégico mais avançado, poderia (respeitadas as legislações vigentes), ainda, coletar, organizar e analisar volumes de dados sobre seus pacientes, antecipando necessidades e tendências de saúde que irão transformar completamente a forma como os cuidados médicos são planejados e oferecidos.
Abordar a IA estrategicamente significa não apenas buscar eficiência operacional, mas utilizar a tecnologia para identificar novas fontes de valor, explorar novos modelos de receita e inovar continuamente os processos internos e externos da organização em nome de uma transformação. Mais que redução de custos, o seu olhar estratégico é sobre crescimento sustentável e fortalecimento de vantagens competitivas.
Grandes consultorias apontam que empresas que adotam IA de maneira estratégica alcançam em média 30% mais crescimento em receita e até 50% de redução de custos operacionais. Tais organizações utilizam a tecnologia não apenas para resolver problemas imediatos, mas para moldar estratégias de médio e longo prazo, redefinir seu posicionamento competitivo e estabelecer novas formas de governança.
Desta forma, é possível vislumbrar uma realidade em que o futuro da IA nas organizações não está apenas em sua capacidade técnica ou em sua eficácia operacional, mas sim em como será integrada às estratégias centrais das empresas. Explorar as abordagens operacional, tática e estratégica dessa tecnologia será, cada vez mais, um diferencial importante no sucesso organizacional, abrindo espaço para discussões profundas e essenciais sobre como utilizar a inteligência artificial para moldar o futuro das empresas e da sociedade como um todo.
Autor
Natália Marroni Borges
Professora, pesquisadora e consultora estratégica em inteligência artificial, com 20 anos de experiência em gestão estratégica, IA, foresight e inovação. Doutora e pós-doutora com foco em Inteligência Artificial e Foresight, atuou em organizações de diferentes portes — de startups a grandes empresas, conduzindo iniciativas de adoção de IA e transformação estratégica. É fundadora do NAVI AI New Ventures, que fomenta a pesquisa e apoia startups na área de inteligência artificial, e participa ativamente de grupos de pesquisa como o IEA Future Lab (UFRGS), o RAIES (PUCRS) e o Think Tank da ABES (USP). Seu trabalho conecta academia e mercado, tornando a IA acessível, aplicável e estrategicamente relevante para os desafios organizacionais.